No templo (1).

Seria fácil descrever o longo pontificado de João Paulo II como um combate entre a civilização e a barbárie.

À civilização — piedosamente agnóstica (para não dizer impiedosamente ateia), fina, centrada no século, permeável à moda, seduzida pelo corpo, viciada numa concepção bastante tagarela da beleza — opunham-se os hunos da Polónia, que iam descalços para Fátima com os bracinhos em coto, engoliam repolho ao almoço e berravam vade retro à passagem de um homossexual (exercício aparentemente infrutífero, se pensarmos nos vários escândalos que sacudiram o mandato).

A civilização ocupava-se de assuntos importantes, como a legalização das drogas leves ou a defesa do cinema francês. Os bárbaros, por seu turno, brandiam tremulamente o crucifixo contra as assassinas de fetos mal formados e prometiam labaredas a quem separasse o matrimónio do prazer (como se as duas coisas, aqui entre nós, alguma vez tivessem andado misturadas).

A civilização era portanto apolínea, cínica, blasé — enquanto a barbárie se mostrava tão ruidosa e apopléctica como o João Gonçalves num dia mau.

Até que chegou Ratzinger, e o nosso sossego acabou.

(Continua)

12 pensamentos sobre “No templo (1).

  1. «Mas um dia chegou Ratzinger, e o nosso sossego acabou.»
    Isto promete. Imagino o raciocínio que se segue, e aguardo com gosto antecipado que o desenvolves.

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  2. Lamento informá-lo, mas os sensatos, honestos bárbaros sabem que o matrimónio e o prazer são duas coisas si tellement differentes que o primeiro até produz nados vivos – e os alimenta e atura anos a fio.

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