Assoberbado.

Só vou ter tempo para pequenas notas a desoras até ao fim do ano.

– A primeira delas para escrever que ser despedido por Álvaro Sobrinho deve ser das coisas menos invejáveis que podem ocorrer a alguém. Dito isto, maravilha-me a insistência da Newshold em ter um jornal. O “novo projecto” anuncia-se agora, com o garbo possível, para alívio de 66 funcionários.

– A segunda nota para assinalar a divulgação, pelo canal do Correio da Manhã, do registo audiovisual do interrogatório feito a Miguel Macedo no Ministério Público. Não parece, mas tem tudo a ver com o parágrafo anterior.

– Isto está a acontecer no jornalismo, na publicidade, na arquitectura, nas editoras, nas actividades culturais que se relacionaram de alguma forma com as empresas. A devastação é total. E não tenham ilusões: ganha-se muito pouco com aquilo que se perde.

– Uma mulher disse-me que nunca viu patrões tratarem tão mal os funcionários como hoje. Respondi-lhe que não era uma questão de hierarquia. Actualmente, nas empresas, toda a gente trata mal quem se puser a jeito. Pode ser outra empresa. Pode ser um fornecedor. Pode ser qualquer um.

– Entre outras coisas, o que aconteceu foi a falência do exemplo. Banqueiros, ministros e patrões do futebol foram presos ou acusados. Álvaro Sobrinho manda num grupo de comunicação social. As nossas maiores empresas são uma sombra do que foram.

Portugal está a descobrir as delícias do cinismo. Já vai tarde.

10 pensamentos sobre “Assoberbado.

  1. Só dois pontos, por enquanto.

    O CM tem sido visto como um pilar da liberdade de informação, precisamente porque divulgava abundantemente dados pessoas do Sócrates e familiares, transcrevia interrogatórios, incluindo coloridas trocas de palavras entre o visado e o juiz. Ficava ao critério do CM decidir se aquilo era, ou não, do interesse dos seus leitores, aquilo que solenemente muitos definiam como “interesse público”. Ora, isso não me choca menos, nem mais, do que a exposição audiovisual de um interrogatório, a não ser que o visado esteja nu, no sentido literal, em frente do juiz. E então? O CM descobriu agora um filão paralelo com o caso Miguel Macedo. A direita já começou a rever os conceitos de interesse público e liberdade de imprensa, ou nem por isso, porque de qualquer forma o homem já estava queimado?

    Os patrões tratam cada vez pior os “funcionários”, sim. Mas, precisamente, porque esses são cada vez menos funcionários no sentido clássico, aquilo que se chama trabalhadores, mas sim “colaboradores”, isto é, gente com um daqueles vínculos pós modernos à empresa, desde avençados, estagiários, outsorcidários, etc. que se sujeitam a tudo por estado de necessidade e que não têm acesso ao direito laboral clássico, aquilo que protegia os trabalhadores, fazendo-os andar de cabeça erguida, apesar de tudo. Não me parece que tenha a ver com a falência de exemplos. Não vejo porque é que qualquer um dos velhos comendadores capitães de indústria de há vinte, cinquenta anos, teria tido atitude diferente. Aliás, como é que tratam os seus trabalhadores os patrões da SONAE e da Jerónimo Martins?
    Já quanto à relação com outras empresas ou fornecedores, já não sei que diga.

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    1. “O CM tem sido visto como um pilar da liberdade de informação”. Tem? Discordo da sua asserção.

      “Não me parece que tenha a ver com a falência de exemplos”. Porque, repare, eu contestei que o problema estava na relação empregador-empregado. Julgo que o problema está agora em todo o tipo de relações: quando se sente alguém fraco, toca a pisar. Pode ser um fornecedor. De ser outra empresa com quem se esteve em aliança mais ou menos longa. Os exemplos tinham a função de marcar limites éticos, só isso, ao modo como as empresas se deviam comportar entre si, como deviam discutir, como deviam relacionar-se. Hoje, para dar um exemplo meu, encontro no marketing das empresas meninas que tÊm menos de um ano de profissão e nem sequer hesitam em corrigir à pata e conspurcar textos meus ou de outro tipo qualquer — eu tenho 20 anos de profissão, sou premiado em Cannes, vários anos de direção criativa, etc.

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      1. Para mim, o CM não é bem isso, para o Luís Jorge também não será, mas grande parte da direita tem achado que o CM publica o que os outros jornais, todos tomados pela esquerda, não querem publicar. Aquelas coisas sobre aquele tal gajo.

        Agora, sobre essa coisa da ética empresarial e do exemplo. Eu referia-me apenas ao universo que conheço, o das relações empregador/empregado e de facto a esse nível sei bem que as relações se degradaram por causa da precariedade dos vínculos. Não surgiu exactamente uma espécie nova de empresário. Os já instalados defendem e agradecem a precariedade e a flexibilidade, entendendo-se flexibilidade por dobrar a espinha com facilidade. Talvez não seja a isso que se referia a tal mulher quando se queixou de que os patrões agora tratavam mal os funcionários. Mas a grande maioria já não bate nos empregados, como faziam dantes os donos das mercearias aos marçanos que vinham da província. Eu já acho suficientemente violento que um patrão diga, ó filho, não vens trabalhar no domingo, há mais quem queira, tu nem sequer tens horário de trabalho no teu contrato. Aqui não há défice de ética, mas apenas uma nova relação de poder entre quem presta um serviço e quem o encomenda. Acontece que estávamos habituados a considerar mais eticamente justo o que estava no código do trabalho, quanto a direitos e deveres de patrões e trabalhadores.. Ou seja, aquilo que achávamos ético, não deixávamos à consideração dos patrões: pelo sim, pelo não, que a natureza das coisas é o que é e o diabo está a cada esquina, colocávamos em lei e em contrato de acordo com a lei, aquilo que achávamos mais ético nessas relações. Parece que agora há um novo paradigma, qualquer coisa assim.

        Sobre essa degradação de que fala das relações entre empresas, não tenho grandes exemplos. Ah, é verdade: um gajo que me fez um trabalho de electricidade falou mal de um empresário concorrente. Achei mal, mas atribuí isso à crise. Sei que o tipo tinha montes de trabalho, antes da crise da construção civil, e vai levar algum tempo a recuperar a ética. É a vida.

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        1. “Não surgiu exactamente uma espécie nova de empresário. Os já instalados defendem e agradecem a precariedade e a flexibilidade, entendendo-se flexibilidade por dobrar a espinha com facilidade.”

          Concordo, mas observo que nasceram novas relações entre pequenas empresas, por exemplo. No caso da publicidade temos a agência que quer fazer mkt digital, a empresa de relações públicas que quer fazer folhetos, a gráfica que quer fazer publicidade, etc. Por falta de dinheiro toda a gente quer fazer tudo mesmo que não saiba; ora, isso origina novas relações de poder. A relação patrão-empregado torna-se rapidamente minoritária porque as empresas estão cada vez mais pequenas, e são substituídas por redes de microempresas a trabalhar e conjunto, como fornecedoras.E isso é palco de novas explorações.

          Preocupa-me que os sindicatos e os partidos de esquerda não estejam atentos a isto, que se torna rapidamente dominante. Mas estamos sempre presos aos arquétipos estabelecidos.

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          1. Quando não se sabe por onde começar raramente se começa pelo principio. Eu escolhi estas linhas do ultimo comentário de LMJ para botar palavra:

            “No caso da publicidade temos a agência que quer fazer mkt digital, a empresa de relações públicas que quer fazer folhetos, a gráfica que quer fazer publicidade, etc. Por falta de dinheiro toda a gente quer fazer tudo mesmo que não saiba.”

            A falta de dinheiro explicará muita coisa, mas não tudo:
            No fundo questão que mais apoquenta é saber se amanhã haverá lugar para agências de marketing digital, de relações publicas, etc. O nível de incerteza atingiu tal grau, as possibilidades transformacionais são tão vastas, que desenvolver uma estratégia de negócio e tomar decisões é quase impossível e cada um arranja o para-quedas que pode. Diversificar, desinvestir e reduzir custos têm estado ultimamente no pódio das mais populares. O problema é que rapidamente se esgotam e volta a ter de se responder à pergunta imortalizada pelo Vladimir Ilitch :”Que fazer?”

            “Preocupa-me que os sindicatos e os partidos de esquerda não estejam atentos a isto, que se torna rapidamente dominante…
            LMJ

            “Os patrões tratam cada vez pior os “funcionários”, sim. Mas, precisamente, porque esses são cada vez menos funcionários no sentido clássico, aquilo que se chama trabalhadores, mas sim “colaboradores”, isto é, gente com um daqueles vínculos pós modernos à empresa, desde avençados, estagiários, outsorcidários, etc. que se sujeitam a tudo por estado de necessidade e que não têm acesso ao direito laboral clássico, aquilo que protegia os trabalhadores, fazendo-os andar de cabeça erguida, apesar de tudo.”
            “Caramelo”

            Foi Mrs. Thatcher quem introduziu a obrigatoriedade dos sindicatos referendarem as declarações de greve.
            Porém para o presente Governo Conservador a venerada Baronesa Thatcher não foi suficientemente longe estando para ser aprovada uma nova lei segundo a qual será também necessário que estejam a favor da greve pelo menos 50% dos sindicalizados com direito a voto. Com a dispersão dos trabalhadores por milhentas empresas, e tendo sido expressamente interdito o voto on-line, isto resulta na proibição de facto do direito à greve.
            Não ocorreu ao Governo que, se aplicada a mesma lei na eleição dos Membros do Parlamento, muito poucos estariam hoje lá sentados.
            O mercado de trabalho foi brutalizado, despido de quaisquer garantias, e se nos raros casos em que o trabalhador decide processar a entidade patronal necessitará primeiro de pagar emolumentos exorbitantes, que não serão devolvidos mesmo ganhando a causa.
            Desapareceu o conceito de carreira profissional : A ideia de se ir progressivamente ganhando experiência e saber e um salário condizente deixou de ser possível, e todos são confrontados com a natureza impermanente do seu trabalho. Os próprios empregadores sabem ser também impermanente o seu modelo de negócio e não se tomam a si próprios como sendo organizações socialmente responsáveis.
            No local de trabalho deixou de haver colegas para haver apenas rivais : O mercado de trabalho em Portugal, (e não só), sofre do síndrome do Titanic : Demasiados icebergues e muito poucos salva-vidas.
            Inculcada a ideia de não haver alternativa, (a celebre TINA da Mrs. Thatcher), veio o fatalismo e a pouca ou nenhuma vontade de lutar contra a presente situação.
            Realidades tidas como impossíveis de acontecer, tais como o trabalho forçado, tornaram-se banais sobretudo nas áreas da construção e da agricultura, tendo precisamente a Joseph Rowntree Foundation publicado um relatório sobre o fenómeno, (Gary Craig, Aline Gaus et al, “Modern Slavery in the United Kingdom”, Joseph Rowntree Foundation, 2007).
            Estimam os autores atingir as dezenas de milhar o numero de trabalhadores escravos na Grã-Bretanha, tendo o Home Office, insuspeito que é de exageros, calculado em 2014 serem estes entre 10 e 13.000.
            Os trabalhadores sujeitos aos contractos zero-horas, aqueles em que têm de estar disponíveis para trabalhar quando e quanto o patrão quiser, são hoje mais de milhão e meio, todos prontos para executar a tarefa que houver em troca de um tanto pago à hora. Estes trabalhadores-mercadoria lembram àqueles com suficiente idade o que era até aos anos sessenta a vida dos trabalhadores rurais alentejanos e a dos estivadores do Porto de Lisboa.
            A velha serpente volta a levantar a cabeça.

            ( suficientemente abusada que foi a paciência alheia, isto hoje fica por aqui)

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  2. Trago simpatia para quem o tempo nunca é suficiente vinda de um velho viajante que, depois da travessia, vê finalmente o seu barco ancorado em segurança no porto.
    Deseja-se sempre encontrar na viagem “ fair winds and following seas” mas raramente assim é : A vida é arriscada e cheia de ciladas, seja uma família destruída, o inesperado desemprego, um problema de saúde e, inevitavelmente, todas as incertezas e angustias trazidas pela velhice.
    Uma boa sociedade, aquela em que o respectivo contrato não foi atirado para o lixo, reconhece tudo isto e por isso instituiu um sistema de seguro colectivo que defenda cada um dos riscos da travessia.
    O que relata no seu post resulta do facto das pessoas terem descoberto que esse contrato, de acordo com o qual fizeram os seus planos e escolhas de vida, foi subitamente rasgado e que agora passou a ser o cada um por si, tendo sido obliterado da vida colectiva o respeito pelo outro.
    É verdade, uma dolorosa verdade, que em Portugal faltam exemplos de coragem e probidade que inspirem. É também verdade que os media, em particular as televisões, se renderam a satisfazer os gostos da população mais ignorante e boçal, quando o seu dever seria esclarecer e educar informando.
    Por isso a Vida Breve é importante pois, ao resistir neste ultimo refugio em que se tornou a blogosfera, se tornou na ténue luz no negrume da noite. A ela e ao seu Autor os votos de uma vida longa e de um feliz Natal.

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    1. “O que relata no seu post resulta do facto das pessoas terem descoberto que esse contrato, de acordo com o qual fizeram os seus planos e escolhas de vida, foi subitamente rasgado e que agora passou a ser o cada um por si, tendo sido obliterado da vida colectiva o respeito pelo outro.”

      Sim. Essa questão do compromisso é sem dúvida importante.

      E feliz natal, Manuel.

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  3. Uma visao interessante de Bernard Friot, sociologo do trabalho e do salariado, centrada no caso frances. E’ longo, mas vale a pena ouvir. Nao se trata de estar necessariamente de acordo com tudo o que ele diz ou propoe, ate’ porque ficam muitas pontas soltas, mas perceber como a aceitacao acritica de pressupostos muito discutiveis e a supressao da historia dos movimentos sindicais e de trabalhadores leva facilmente ao estado de estupor e de impotencia politica da esquerda e da populacao em geral de que falou o manuel.

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