Um natal supé feliz.

Antes do Natal duas adolescentes ofereceram-me na rua uma quadra manuscrita que apelava ao fim do consumismo e à espiritualidade. Tinham cabelos lustrosos, aspecto soigné e o fervor anacrónico de quem despeja mealheiros para baptizar pretinhos nas missões.

Fiquei atento e não me desiludi: na semana seguinte o país foi consumido por uma orgia salazarenga de caridade e devoção. Os sem-abrigo casaram-se em barda, as mães de Cascais fizeram soufflés aos entrevados, a Júlia e o Goucha entrevistaram manetas, tuberculosos e débeis mentais. Os alcoólicos sorveram sopa com cheirinho, muito boa, muito quentinha. Um patego da Guarda trajou de pai natal e deu chocolates do Lidl à terceira idade.

Sim, eu esperava uma epifania e obtive-a: Portugal não está deprimido nem mortificado como se diz por aí. Pelo contrário, Portugal exulta. Portugal está em júbilo, porque bastou um ano de crise para reencontrar os seus pobrezinhos no adro da igreja, os seus velhos de pés em chaga, os meninos escalavrados a lamber o ranho e a estender as mãos. E já tinhamos todos tantas saudades.

Na televisão, uma dondoca serve bacalhau aos desempregados e deseja-me um Natal supé feliz. Para si também, tia. Vemo-nos no reveillon — ou no céu, se Deus quiser.

26 pensamentos sobre “Um natal supé feliz.

  1. Também vi algumas dessas merdas, ainda estou comovido. Agora estou à espera que o programa “O Futuro Fala Global” descubra aí uma iniciativa bastantemente informática, sob o patrocínio da Fundação para os Gadgets Mesmo Mesmo Moderninhos, que permita via internet que cada Português tenha o seu pobrezinho protegido. Quero-me inscrever – para já, como patrono.

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  2. Pois, é comovente como diz o primeiro comentador, e é bonito e serviria a Gautier. Agora não se prejudique você por pregão de república federalista em loja de molhados que não paga a pena. Voltando cá daqui a duzentos anos terá que escrever o mesmo que verá a mesma récua de azêmulas tomadas por Cíceros e sentadas em academia de eruditos. É ainda e sempre o consabido e estudado putedo (deixemos-lhe epítetos e substantivo por não sermos gazetistas nem terem porta de baile que nos vedem) a rabo do macrocéfalo goraz. Desses comércios já o velho Camilo, ou Quevedo, bispavam à légua.

    Mas que é um belo texto sobre essa coisa em forma de assim, isso é. E ainda você pensou na pesca à popa de navios. Tire essas coisas da mona, que o aforismo de Johnson, se perdeu força foi por sobrelotação prisional. Fique por aí que isso bem precisa de retratos; desses. Que não adiante e você insista é mérito seu.

    Cumprimentos.

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    1. Trocava tudo por umas voltas ao mundo na marinha mercante, garanto-lhe. Não que a carreira de publicitário tenha sido desagradável, mas li muito Conrad e Melville. E agradeço os cumprimentos.

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      1. Achava-se então você, por via de Conrad ou Melville, capaz de se dar ao agrado desses caminhos sem claros mármores ou verdes pinhos. Por certo daria conta do recado. Você que compôs aquela estonteante mecânica celestial em Marvão teria coração p’ra isso. E o «isso» é “poético”, em alto grau. Nem imagina quanto.

        Viveu uma mulher em Oslo, Gunvor Hofmo (http://en.wikipedia.org/wiki/Gunvor_Hofmo) a quem levaram uma amiga num navio (a 26 de Novembro de 1942) o Donau, para Auschwitz. Dessa partida resta uma foto clandestina. Depois, ela escreveu à memória da outra já em cinzas uma vida de poemas que a tornaram imortal. Difíceis de traduzir, mas comoventes também porque contrariam aquele adágio que diz a poesia impossível depois de Auschwitz. Já em 1986, num livro (Estrelas e a Infância) e no poema que dá título ao livro, há os três primeiros versos e a pergunta que espelham a dor de uma vida, que evocam ainda e sempre a outra mulher em cinzas, Ruth Maier. E que são (por poesia) de tradução difícil:
        Jeg kjenner sjomannens lange nattvakter/ Hans ensome hjerte spiser av stjernelyser/ Kan en bli mett av evighet?
        Conheço do marinheiro a longa vigia da noite/ O seu coração solitário come do luzir de estrelas/ Pode alguém ser saciado pela eternidade?

        Lendo aquele seu post de xadrez em Marvão, a gente quase que afiançava que sim. E se, na tal auto-estrada para Damasco encontrar essas duas em alguma estação de serviço, se calhar vai descobrir que tinha mais admiradoras do que supunha…

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        1. Também gostei muito de escrever o texto do Marvão — e, exceptuando o João Lisboa, julguei que ninguém tinha dado por ele. Vou informar-me sobre essa autora norueguesa que me recomenda. Mais uma vez, obrigado.

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      2. Eu também trocava tudo por voltas ao mundo, mas em paquete, a ler Conrad e Melville estendido no deck. É bem verdade que, como dizem agora, os jovens já não têm espírito de sacrifício e não querem trabalhar e com tanta oferta de emprego na marinhagem. A propósito, o Melville era mais caça com arpão às baleias. O Conrad é que era da mercante. Nada de confusões, que ainda se pegam os dois à bulha lá num bar em Bangkok.

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  3. Muito muito bom. Reportagem da RTP1 à porta de estabelecimentos de comércio tradicional, no dia seguinte ao Natal. Uma jornalista subgramatical e esganiçada entrevista popular da terceira idade, agasalhadinha em negros panos, muço hirsuto de amolar faca:
    -“Vem trocar roupa?”
    -“Beinho… Esta camisola está de modos que muito apertadinha, porque eu tenho as catarinas muito grandes, não sei se a menina me esta a perceberi…”

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  4. Luís: são postas destas que fazem com que não haja rival possível na blogosfera. O que eu me ri, Meu Deus (também com o comentário do André, devo dizer). É esta maldade verdadeiramente genuína que nos vai proporcionar a todos (espero) uma malga de sopa quentinha nas profundezas. Servida pela Tancinha, claro.

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