Em 1978 fui com o meu pai ao acampamento anual do MDP/CDE, no Alentejo profundo. O partido era a cheerleader dos comunistas no processo revolucionário em curso: meneava-se no relvado, içava bandeirolas, fazia parte da equipa, mas corriam gentilmente com ele no princípio dos jogos. Mais tarde formaria com o PC a Aliança Povo Unido, uma versão modesta do pacto de Varsóvia, e seria tomado, como a Checoslováquia, pelas brigadas do Cominterm.
A extrema-esquerda de 78 não era, como é hoje, uma agremiação de comedores de tofu. Alguns daqueles barbudos tinham sido presos e espancados pela PIDE, outros fugiram a salto para a Suécia. Muitos, como o meu pai, formaram a primeira geração de licenciados das suas famílias e procuravam manter, honrosamente, o esboço de uma consciência de classe. O fenómeno repugnante dos filhos de gente pobre que fingiam ter quintas em Aveiro — a tralha deslumbrada do cavaquismo — nunca contaminou, e isso é redentor, esta primeira geração de radicais.
Talvez assim se explique a atmosfera invulgarmente viril do tal encontro entre os chaparros. Durante o dia visitávamos a reforma agrária ou seguíamos o mundial de xadrez, que opunha os dois lados da guerra fria pelos cérebros de Karpov e Korchnoi. Ao serão, os camaradas testemunhavam as sevícias que tinham padecido durante a longa noite do fascismo.
No domingo, mataram um porco.
O bicho foi trazido para perto da fogueira, amarrado a um estrado. Mal avistou a faca começou a ginchar alto, como se fosse o último dos Romanov. Mas o povo exibiu mão segura e o animal seria degolado, sangrado, pendurado em ganchos, esventrado e esquartejado em três tempos, com determinação ancestral. Três velhas de negro guisaram a fressura, um campónio assou as febras e a vanguarda do proletariado pegou em pratos de plástico, lambendo os beiços contra o capital.
O que ocorreu a seguir ainda me confunde um pouco. A multidão em fúria investiu contra a carcaça do suíno. As vísceras sumiram-se num ápice, dos bifes sobraram uns cotozinhos calcinados e eu passei o resto da tarde a comer bolacha araruta.
Assim, aos nove anos, com a presciência que me amaldiçoou desde então, compreendi que o socialismo tinha corrido horrivelmente mal. Não falei do episódio com o meu pai: ele ainda ficou uns anos no MDP, e creio que foi candidato a deputado — mas nunca mais o vi desencorajar, com familiaridade estudada, os pobres diabos que insistiam em tratá-lo por senhor engenheiro.
Por causa das merdas.
Muito muito bom, Luis.
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Obrigado, camaradas. Carlos: não, isto foram duas ou três horas no fim-de-semana.
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Tempo bem empregue.
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A natureza humana é tramada, Luís. E tentar compreender as coisas, ao invés de simplesmente fazer parte de uma qualquer claque de apoio, não é muito bem visto nesta terra, onde numas coisas se vê tudo a preto e branco e noutras se vê tudo em tons de cinzento – consoante o interesse do momento.
(E, já agora, belo texto. Presumo que as tais cinco horas de escrita não sejam para isto, mas estão a surtir efeito também nisto.)
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Muito bom, Luís; parabéns!
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Abraço, Fernando.
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Sublime.
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E acrescento: se isto fosse a primeira página de um livro de memórias comprava sem hesitar!
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Bom, espero que esse livro ainda venha longe. Mas agradeço-lhe na mesma, António.
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O texto é um mimo, especialmente pelas recordações que traz a um «fóssil» como eu, que em 1978 já era homem, com passagem pela guerra colonial. Terá sido, aliás, por essa altura que fui a um convívio do PCP, o qual decorreu numa herdade colectiva de produção em Avis. Fui de boa fé, convidado por um camarada de tropa, que teria como missão aliciar-me para a causa. Não teve sorte. Mas da viagem, cujos pontos altos foram um passeio pela herdade a que se seguiu um pic-nic. Hilariante foi a descrição do cicerone, o «famoso» Zé Luís, a dizer que «os camaradas roubaram as terras aos proprietários», rectificando de seguida que não tinha sido roubo «mas sim ocupação» e as cantorias dos filhos dos camaradas. Rapazes e raparigas, pré-adolescentes, puseram os cabelos em pé aos progenitores quando no regresso cantavam – mas truncando a letra – as palavras de ordem mais em voga na altura: «CGTP sujidade sindical». Era o tempo da luta entre unidade e unicidade sindical.
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Lembro-me bem dessas palavras de ordem, Vitor. Um dia talvez conte aqui uma outra história relacionada com elas.
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És fantástico, Luis Miguel!:)
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Lol. Tenho um email em atraso para ti. Envio-to entre hoje e amanhã, Isabel.
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Fabuloso!
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As leitoras mimam-me.
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O que só vem provar a natureza profundamente anti-humana deste tipo de ambição igualitária. Como era, «mude-se o povo»?
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Anti-humana? Nada há de mais humano, para o bem ou para o mal.
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Épico, Luis Faria. Há muito que não lia uma coisa tão boa. Se bem que correu sérios risco de, com essa tenra idade, a multidão de comunas o ter também esquartejado para o meterem na salgadeira. Mas nem sequer aproveitou o molhinho do sarrabulho para molhar o pãozito? Nem a bexiga do reco para fazer uma bolita de futebol? Ó famélicos da terra!
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A bexiga serve para fazer o bucho, caro leitor das avenidas novas.
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A bexiga serve para fazer o bucho? Quererá o caro postador da lapa dizer bucho recheado, não é assim? E tivesse ido mais vezes em campanhas de dinamização cultural ou pesquisas etnográficas nessa época para o campo, saberia que bucho, bucho mesmo, é o estômago do porco. Mas sim, pode também fazer-se com bexiga, é uso em muitos lugares. E teria descoberto também que é uso em muitos sítios a miudagem encher bexigas de porco para fazer bolas de futebol, nomeadamente em locais onde não é uso encher o bucho. Ou a bexiga. Enchi eu vários, mas é preciso técnica, não é para qualquer um.
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Pronto, pronto, dou-me por vencido.
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Nuk ka ndjenjat e vështirë, shok
É albanês para no hard feelings, comrade.
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Ri com gosto! E muito bem escrito.
(Essa primeira geração de filhos de drs. e engs., alguns deles emigrados filhos de emigrantes, devia começar a pensar escrever as memórias).
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Confesso-lhe que não sei se a emigração é assim tão frequente na pandilha (na minha família só houve uns vagos projectos de Austrália e Suécia), mas sem dúvida que deviam escrever.
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