A retórica arrebicada do sofrimento humano.

A jurista Isabel Moreira, um dos melhores argumentos da direita contra o casamento gay, invectivou hoje o piadista de serviço no 31 da Armada com o mesmo arsenal de imprecações trémulas a que deve a sua ambígua notoriedade nos debates del corazón. Afirma a senhora (sejamos generosos) que o rapaz

… nunca deve ter visto ou ouvido dizer de alguém morrer por causa da homofobia; … nunca deve ter parado na sua vida para pensar o que é que deve ser saber que a lei nos vê como criminosos em plenos anos oitenta; … nunca deve ter ouvido o choro compulsivo de um adolescente esmagado por uma família que não o aceita e que lhe diz és doente, como de resto se dizia oficialmente até há poucos anos; … nunca, espero que nunca, deve ter presenciado aquele morrer de amor que acontece a tantos, mas com a diferença de não poder ser partilhado em voz alta, acolhido nos braços da família, apaziguado e defendido por um acto público.

E conclui, entre catervas de homicídios sintácticos, que o tal rapaz faz parte da raça dos que só se incomoda com o que o incomoda pessoalmente.

Chegou por isso o momento de recordarmos os dois temas que incomodaram pessoalmente a jurista Isabel Moreira nos seus textos do Jugular: foram eles o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a protecção da privacidade do primeiro-ministro, tão enxovalhada pelas magistraturas.

Recordemos também que durante a defesa histriónica dos homossexuais que morrem por amor e choram compulsivamente, ou dos governantes que telefonam à canalha da política e dos negócios, a Isabel Moreira se esqueceu de fingir o seu incómodo pessoal perante os nove velhos que morreram em Lisboa, num período de doze horas, expostos ao frio, à fome e ao abandono.

Tal como não a vimos incomodar-se com os 170 mil desempregados que não recebem qualquer subsídio, e que talvez chorem compulsivamente (não será convulsivamente, Isabel?) pelas famílias a seu cargo.

Recordemos ainda que nada disso a impede de pontificar sobre a indiferença dos outros, dos que não a acompanham em temas tão caros à alegria do povo e ao futuro do país, nem respeitam a sua retórica miserável aplicada ao sofrimento das minorias.

34 pensamentos sobre “A retórica arrebicada do sofrimento humano.

  1. Também eu li a notícia no Diário de Notícias, Luís, e fiquei impressionado — embora pouco surpreendido. A minha irmã é voluntária numa instituição que distribui comida e roupa pelos sem-abrigo do Porto, e vê coisas que muitos pensariam já não existir. Falo de famílias inteiras — não, não são toxicodependentes — a viver debaixo de vãos de escada, incluindo grávidas e crianças.
    A questão dos idosos é ligeiramente diferente: trata-se sobretudo gente abandonada pela família, que chega ao ponto de ‘depositá-los’ na urgência de um qualquer hospital no dia 23 de Dezembro (contou-me uma amiga médica, mas nem era necessário — todos sabemos).
    Mas indo ao cerne do meu comentário: eu também li a notícia e, perdendo tempo a escrever no meu ‘espaço’ sobre coisas tão fúteis como a audição de um CD, não a referi. Isso faz de mim uma pessoa pior? Ou significa que eu me preocupo menos? Quero acreditar que não. E, por favor, não leia o que escrevi como uma defesa da pessoa visada pelo seu texto. É apenas a manifestação de uma questão que muitas vezes coloco a mim mesmo.

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    1. Mas Carlos, você também não passa os dias a apontar o dedinho a quem não dá importância às suas preocupações, ou brinca com elas, ou está a pensar na vida. Essa é a diferença. A senhora é de um fervor moralista intolerável, e não tem qualquer sentido da realidade.

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      1. Tenho dias, Luís. Há alturas em que também condeno aos outros o mal que pratico, mas tento – e essa é uma luta de todos os dias – ser justo, não ajuizar em demasia e, o que é mais difícil, reconhecer quando erro. Mas agradeço as suas palavras – sinceramente.

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              1. Oh Luïs vocë ë o mestre, eu nåo passo de aprendiz. Sobretudo agora que tenho os neurönios pouco oxigenados å conta de uma crise asmåtica muito pouco oportuna. Bom fim de semana para si.

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  2. Não adianta, Luís. Nem todos saõ assim na “causa” ( e nem todos são assim no Jugular), mas existe, de facto, essa escola: uma pretensão de superioridade moral de comadre de soalheira.

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  3. Moral; verdade; ética, e outras que tal. Cada um serve-as como quer, sabe ou aprendeu a servir. Não passam de palavras. Com um sentido bem definido no Priberam ou na Porto Editora, por outras palavras. Com o sentido que cada um lhe dá, acima de tudo.
    Têm em comum, uma força, constrangedora, quando arremessadas do jeito que não nos convém; eloquente quando vem ao nosso encontro. Afinal que Goebbels ou Estaline não as usou?
    Isto tudo para dizer que são palavras surdas e ensurdessedoras; demasiado intimas para ser ditas.
    Que na boca dos outros – os (nossos) errados, serão sempre linha de montagem. Lugar comum. Nada.

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  4. Na mouche. Sabe, é importante existir o Cinco Dias e o Jugular. Para nos lembrar todas as coisas que são realmente necessárias. Todas as outras estão a ser tratadas, com certeza, pelos comentadores de serviço daqueles dois blogues.

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  5. Reitero o que te disse ontem: são por posts destes que as pessoas gostam de ler o Vida Breve. Post notável sobre uma personalidade – e sobretudo um método – absolutamente medíocres.

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  6. “(…)nunca, espero que nunca, deve ter presenciado aquele morrer de amor que acontece a tantos(…)”

    Aquele morrer de amor, Luís… “Aquele”, não o outro – que eu não sei qual é – mas a senhora vai no metro e vê naquela gente toda um romance da Halerquim, em versão homossexual. Hordas de cidadãos morrendo de amor homossexual, caindo fulminados pela deficiência cardíaca, exclusiva dos homossexuais, que se agudiza nesta quadra.

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  7. Agradeço-lhe o ânimo e talvez recomeçe a escrever em breve. Não sei ainda sobre o quê, mas apetece. Depois aviso.

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  8. Luis,
    desculpe, mas não entendo a sua argumentação.
    Se a Isabel Moreira não escreveu sobre os 9 mortos ou os 170.000 desempregados, não pode concluir que isso seja sinal de indiferença.
    (até ia dizer que sinal é, mas está aqui o La Palisse a gritar “isso é plágio!”, de modo que não digo)

    Em contrapartida, no 31 da Armada escreveu-se sobre um problema concreto, mostrando indiferença em relação ao sofrimento subjacente.
    Independentemente do tom em que o faz, a crítica da Isabel Moreira ao post no 31 da Armada é pertinente: pessoas que falam de um problema sem parecerem preocupadas com o sofrimento que é parte integral daquele.

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    1. Isso apenas quer dizer que você dá mais importância ao que se diz, enquanto eu dou mais importância ao que as pessoas evitam. Os silêncios são sempre interessantes.

      Eu chamei a atenção para o facto de podermos ter um discurso sobre o sofrimento que é indiferente à grande maioria dos que sofrem. A Isabel Moreira parece-me um excelente exemplo do fenónemo.

      Outro assunto a desenvolver seria o do cinismo associado a este tipo de discurso: o que procuram tapar com aquilo que revelam? Mas é um outro tema.

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      1. Luis,
        se há na blogosfera chavão que considero irritante, é o do “silêncio ensurdecedor”. Andamos aqui armados em guardas das consciências alheias?
        Digo-o em defesa própria (pois: não conte a ninguém, mas não sei quem é essa Isabel Moreira, e raramente leio o Jugular). É que dei uma vista de olhos pelo meu blogue e nos últimos meses não falei do Sudão, nem do problema das pescas portuguesas, nem das luvas que os portugueses mais pobres têm de dar para serem atendidos pelo SNS antes que a doença os mate (por acaso sobre isto tinha muito que falar), nem dos nove mortos, nem dos 170.000 desempregados.
        Para piorar, ainda nem acabei de contar as férias nos EUA e já estou a contar as férias no mar Báltico.
        Que congeminações vai fazer sobre estes meus silêncios ensurdecedores?

        Para piorar, não entendi o que diz no segundo parágrafo. Concretamente: afirma que a Isabel Moreira se preocupa com um sofrimento que não preocupa praticamente mais ninguém, ou que o modo como fala desse sofrimento não tem nada a ver com a realidade das pessoas por ele atingidas?

        Sim, o cinismo da estratégia de esconder e revelar é um outro tema. Mas dizem as más línguas que de jesuíta e de louco todos temos um pouco…

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        1. Quem se revelou uma guarda da consciências alheias foi a Isabel Moreira (a Helena já esqueceu o post?) Eu limitei-me a aplicar-lhe a mesma receita. É desagradável? Pois é.

          Quanto à sua pergunta: não afirmo uma coisa nem outra. O sofrimento dos homossexuais preocupa algumas pessoas, e o modo como fala dele tem a ver com a realidade. O que a Isabel Moreira não pode é exigir que os outros lhe dediquem um interesse ou atenção que ela própria não dedica a outros assuntos que provocam muito mais sofrimento e revelam uma “realidade” bem mais grave.

          Quanto ao “silêncio ensurdecedor”, é expressão que não uso, porque me parece banal.

          Não percebo bem onde recai a sua indignação, Helena.

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          1. Luìs,
            eu estou tão pouco indignada que nem sei se vale a pena continuar esta conversa…
            Por mim, podemos ficar por aqui.
            Tanto mais que já entrei na segunda volta. Resumindo:
            Fulano publicou uma opinião sobre determinado tema; Beltrano acusou Fulano de falta de sensibilidade no modo como tratava esse tema.
            Sicrano acusa Beltrano de não falar (e não mostrar igual sensibilidade) sobre outros temas igualmente importantes, ou mais ainda.
            Parece-me que há aqui um curioso caso retórico de bola à trave – mas confesso que o tema não merece tantos comentários quantos os que escrevi.

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  9. Voltamos a saber que nada disto é importante para o país:

    Onze anos para ser adoptada. Abandonada pela mãe, viveu com avó invisual até que foi institucionalizada. Tem 11 anos.
    Maus tratos a idosos – O Ministério Público instaurou um inquérito para apurar as circunstâncias em que funcionava o lar clandestino em Pocariça, Cantanhede, onde quarta–feira de madrugada foram encontradas seis idosas, uma das quais acamada, abandonadas e fechadas.

    Portugal tem 10 por cento de desempregados
    A dívida pública consolidada de Portugal equivale a cem por cento do Produto Interno Bruto (PIB).

    Mais de mil mortos na estrada por ano

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  10. é verdade Luis. Nada de Bica de Sapato nem Lux bem Pap’Açorda. Só vida real. Vidinha´pueril.

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  11. “A jurista Isabel Moreira, um dos melhores argumentos da direita contra o casamento gay”

    ???… !!!… Luís, está tudo bem consigo? A sério? É que, agora, fiquei mesmo preocupado. Pode ser excesso de inquietação da minha parte ou apenas uma outra declinação daquela bacoquice de “gostos não se discutem” mas tudo em mim me empurraria para escrever essa frase exactamente ao contrário…

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