Demiurgo.

Lourenço CordeiroPedro Mexia reagem ao estupor beato que se seguiu à morte de Steve Jobs. Têm razão, claro.

Enquanto o Lourenço denuncia a ilusão moral de quem viu em Jobs uma espécie de guerreiro altermundialista assoberbado a combater os monopólios (o que Jobs nunca foi, acrescento, porque queria substituir, não apenas combater, os monopolistas do seu tempo), Mexia escreve um belo texto sobre a substituição da tecnologia pela “arte” e o perigo de acreditarmos que esta nos revela algo da nossa “essência” em vez de nos instrumentalizar.

A minha interpretação é mais benevolente, embora reconheça que a circunstância de trabalhar há duas décadas com gente carregada de igadgets possa não ser um estímulo ao espírito crítico. Tentarei explicar-me.

É comum nas vidas dos santos que uma existência torturada, cheia de abjecções morais (como não ter reconhecido uma filha aos vinte e poucos anos) possa ser redimida aos olhos do mundo por uma obra avassaladora. O Lourenço deve ter poucas leituras hagiográficas (e quem lhe atira a primeira pedra?), ou não nos recordaria que Jobs esteve sempre longe de ser uma boa pessoa: Mateus era cobrador de impostos. Convém-nos também estabelecer que Jobs, tal como Cristo, teve duas vidas — e que o seu triunfo, tal como o triunfo de Cristo, só chegou depois da reincarnação. Isto é importante, porque a sanha anti-monopolista de Jobs desapareceu após o seu regresso à Apple em 1997 e o atraso tecnológico da empresa (que foi sempre um avanço na perspectiva do utilizador) também foi colmatado por essa altura. Julgo que isto chega para rebater os argumentos deste texto. Há mais em Jobs do que pode ser revelado a um eleitor do Bloco de Esquerda.

Quanto aos perigos da instrumentalização do humano: que perigos são esses? O perigo de podermos ler, em suporte electrónico, o cânone do Ocidente? O perigo de comprarmos o novo disco dos Vampire Weekend antes de chegar à FNAC? Ou o perigo de podermos falar de graça com uma amiga chinesa por uma aplicação do Skype? Que perigo pode surgir de uma aproximação aos outros, excepto a angústia sexual? Heidegger proferiu a conferência que o Pedro Mexia refere em 1952: no tempo da Guerra Fria, sete anos depois de Hiroshima e Nagasaki. Se Jobs alguma vez passou por uma das áreas do Manhattan Project certamente ia a caminho do ioga.

Para mim, a importância simbólica de Jobs seria melhor esclarecida se conseguíssemos explicar a relação primordial que se estabelece entre quem usa os instrumentos e quem os constrói. Há material suficiente na mitologia, de Vulcano a José, pai de Jesus, que era carpinteiro. Abundam os exemplos de fetichização dos objectos artesanais na cultura japonesa e na moda europeia, a que corresponde quase sempre uma deíficação de quem os concebe. Neste sentido, a singularidade de Jobs provém apenas do alcance global dos produtos que nos ofereceu. Talvez regresse ao assunto.

33 pensamentos sobre “Demiurgo.

  1. Muito bom post, Luís. De longe, o melhor que li sobre Steve Jobs ultimamente e o único que se aproxima de um entendimento da origem dessa relação peculiar entre os utilizadores e a marca Apple.

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  2. Texto muito sensato, mesmo incluindo a melhor frase, entre o soundbyte e a crueldade: “Há mais em Jobs do que pode ser revelado a um eleitor do Bloco de Esquerda.”

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  3. Caro Luís, dou-te um exemplo: a excitação que se gerou na passagem do iPhone G3 ao iPhone G4, como se fosse não uma simples novidade tecnológica mas um avanço ontológico. Ouvi conversas quase religiosas a esse respeito, as pessoas não pareciam estar a falar de «gadgets» mas a discutir a transubstanciação da hóstia na eucaristia. A dimensão «humana» da coisa perdia-se um bocado. Já falar com uma amiga chinesa não acho mal.

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    1. Sem dúvida, Pedro: assisti a muitos momentos de epifania ao longo dos anos. Sobre o excesso de devoção dos eleitos até recomendo um livro que propus à Tinta da China e traduzi há muito tempo:

      http://www.wook.pt/ficha/o-culto-das-marcas/a/id/201122

      O culto de Steve Jobs foi muito encorajado pelo próprio, e julgo que decorreu da necessidade de implantação da marca em momentos difíceis. Agora que houve gente com uma relação semelhante com o Tom Ford enquanto estava na Gucci, só para dar um exemplo, não tenho dúvidas. É isso que me leva a pensar que fenómeno é mais primitivo e usual do que se julga.

      O empresário como Prometeu é uma ficção muito útil e muito comum.

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  4. O Texto do Lourenço Cordeiro não tem sentido nenhum (a parte de a microsoft ser lider devido à ‘alta qualidade’ dos seus produtos é de bradar aos céus). O do Pedro Mexia parece-me bastante pertinente, apesar de tudo.

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  5. O documentário “Les statues meurent aussi” (1953), de Alain Resnais e Chris Marker, apesar de ter sido realizado com o objectivo de mostrar o modo diferente como era — é? — encarada a arte ocidental e a arte africana, começa com uma frase que se aplica bem a tudo o que sucedeu após a morte de Steve Jobs: «Quand les hommes sont morts, ils entrent dans l’histoire. Quand les statues sont mortes, elles entrent dans l’art. Cette botanique de la mort, c’est ce que nous appelons la culture.» É isso.

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          1. O meu comentário não visava pôr em causa a qualidade artística de Ana Vidigal, até porque conheço muito mal a sua obra. Simplesmente, lembrei-me do convite para a inauguração de uma exposição de Ana Vidigal que vi num blogue e do comentário do autor do mesmo: «Para ‘happy few’.» Ora, mais chique do que isto não há — diz pouco sobre a obra, é verdade, mas isso são outros 500.

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  6. Tem toda a razão. O Mateus também era cobrador de impostos. Isto de um apóstolo ser cobrador de impostos não lembra ao diabo…

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  7. Pronto, um tipo vira as costas durante dois segundos e é isto. Queria só dizer que me parece evidente que toda a carreira de Jobs se deve à Microsoft (sem desprimor nenhum para Jobs) porque o seu caminho sempre foi o da oposição a ela (grande parte da publicidade recente da Apple se baseia nesse comparativo). E gostava que me explicassem onde não está a qualidade dos produtos da Microsoft (que eu nunca disse serem melhores do que os da Apple – aliás, a carreira recente da Apple, a fase “i”, mostra o contrário). É preciso não esquecer que Jobs foi muito inteligente ao reconhecer que estava a desenhar produtos para um segmento de mercado muito restrito (o young-urban-cool-whatever), um luxo a que a Microsoft nunca se permitiu, o que ajuda a explicar a facilidade de identificação com os «valores da marca» por parte do seu público alvo. E aí estou absolutamente com o Pedro Mexia: há gente para quem a posse de iProdutos é uma questão de identidade, e isso é perigoso.

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    1. Lourenço, Santo Steve é minha testemunha:

      “Jobs nunca conseguiu ter a cota de mercado que a Microsoft, fruto da qualidade dos seus produtos, teve e tem”

      Se isto não é uma comparação, não sei o que seja. Mas a carreira de Jobs não foi feita apenas em oposição à Microsoft. Antes já tinha sido feita em oposição à IBM (veja o filme “1984” no Youtube). Depois, note que a capitalização bolsista da Apple já ultrapassou a da Microsoft há algum tempo, o que respnde um pouco a essa do segmento “muito restrito”. Finalmente: há gente para quem a posse de produtos de marca é uma questão de identidade, tem toda razão, mas isso refere-se a praticamente toda a gente. As marcas substituiram outras fontes de identificação colectiva, e a Apple, que evidentemente explorou o fenómeno, tem tanta culpa como a Burbery ou a Coca-cola. Há casos-limite próximos da neurose, que estão documentados no livro que referi na resposta ao Pedro Mexia, mas são muito, muito raros. A verdade é que as pessoas falam da Apple com o mesmo envelo com que falam de horóscopos, o que, se for perigoso, apenas demonstra que o mundo está repleto de perigos.

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      1. Essa minha frase não insinua que a Microsoft tem melhores produtos que a Apple, apenas que o monopólio da Microsoft não poderia ter sido construído sem a qualidade daquilo que foi fazendo.

        Em relação à identidade, o ponto relevante em relação à Apple é este: se toda a gente tivesse um iPhone, não era assim tão giro ter um iPhone.

        P.S: Tenho um iPod Nano há cinco (cinco!) anos que não troco por nada, don’t get me wrong.

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        1. “Em relação à identidade, o ponto relevante em relação à Apple é este: se toda a gente tivesse um iPhone, não era assim tão giro ter um iPhone.”

          Na cidade onde eu vivo, toda a gente tem um iPhone. E parece que há uma espécie de sinergia positiva, e é ainda mais giro ter um iPhone. Nem que seja por poderes usar o teu telefone no comboio para fazer qualquer coisa útil, sem ninguém achar que estás só a tentar provar a tua identidade.

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  8. [Errata: onde se lê ‘católicos’, leia-se ‘cristãos’. Vem a pessoa armada em esperta dar um correctivo ao ‘homem prático’, e depois é isto…]

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  9. Na saga Millennium, Mikael Blomqvist e Lisbeth Salander usam Macs. Logo no início do primeiro livro (e do primeiro filme) Lisbeth precisa de substituir o computador. Só admite fazê-lo por outro Mac, claro, e há no livro frases enternecedoras sobre os Macs. Stieg Larsson, o autor, defensor das mulheres, denunciante do capitalismo, usa os produtos da Apple como se estes fossem um statement anti-capitalista. Isto acontece frequentemente, apesar da Apple ser uma empresa 100 % capitalista, que vende produtos mais caros do que a concorrência, operando em ambientes tão ou mais fechados do que os da concorrência. É evidente que, por milhentas razões, muita gente de direita também lhe compra os produtos mas a ligação entre a Apple e os eleitores do Bloco de Esquerda permanece sólida, obrigado.

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    1. Ficou quase famosa a crónica de Rui Tavares em que ele confessa que comprou um iPad dois ou três dias após o lançamento. O professor Louçã não deve ter gostado, ai não não.

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